SANTA MISSA CRISMAL
HOMILIA DO PAPA BENTO XVI
Basílica VaticanaQuinta-feira Santa, 9 de Abril de 2009
Amados irmãos e irmãs!
No Cenáculo, na noite anterior à sua paixão, o Senhor rezou pelos discípulos reunidos ao seu redor, estendendo ao mesmo tempo o olhar para a comunidade dos discípulos de todos os séculos, para «aqueles que – disse – vão acreditar em Mim por meio da sua palavra» (Jo 17, 20). Na oração pelos discípulos de todos os tempos, Ele viu-nos também a nós e rezou por nós. Ouçamos o que pede para os Doze e para nós aqui reunidos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo. Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 17s). O Senhor pede a nossa santificação, a nossa consagração na verdade. E envia-nos para continuarmos a sua própria missão. Mas há, nesta oração, uma palavra que chama a nossa atenção; parece-nos pouco compreensível. Jesus diz: «Eu consagro-Me por eles». Que significa? Porventura não é Jesus por natureza «o Santo de Deus», como Pedro confessou na hora decisiva de Cafarnaum (cf. Jo 6, 69)? Como pode agora consagrar-Se, isto é, santificar-Se a Si mesmo?
Para o compreendermos, temos sobretudo de esclarecer o significado das palavras «santo» e «santificar/consagrar», na Bíblia. «Santo»: com esta palavra, descreve-se em primeiro lugar a natureza do próprio Deus, o seu modo de ser muito particular, divino, que é próprio só d’Ele. Só Ele é o verdadeiro e autêntico Santo no sentido originário. Qualquer outra santidade deriva d’Ele, é participação no seu modo de ser. Ele é a Luz puríssima, a Verdade e o Bem sem mancha. Por isso, consagrar alguma coisa ou alguém significa dar tal coisa ou pessoa em propriedade a Deus, tirá-la do âmbito daquilo que é nosso e inseri-la na atmosfera d’Ele, de tal modo que deixe de pertencer às nossas coisas para ser totalmente de Deus. Consagração é, pois, tirar do mundo e entregar ao Deus vivo. Aquela coisa ou pessoa deixa de pertencer a nós ou a si mesma, mas é imersa em Deus. Este acto de privar-se duma coisa para a entregar a Deus, chamamo-lo também sacrifício: já não será propriedade minha, mas d’Ele. No Antigo Testamento, a entrega duma pessoa a Deus, isto é, a sua «santificação» coincide com a sua ordenação sacerdotal, e assim se define também em que consiste o sacerdócio: é uma passagem de propriedade, um ser tirado do mundo e dado a Deus. E, deste modo, ficam agora patentes as duas direcções que fazem parte do processo da santificação/consagração: sair dos contextos da vida do mundo e «ser posto à parte» para Deus. Mas por isto mesmo não é uma segregação; antes, ser entregue a Deus significa ser posto a representar os outros. O sacerdote é subtraído aos laços do mundo e dado a Deus, e precisamente assim, a partir de Deus, deve estar disponível para os outros, para todos. Quando Jesus diz «Eu consagro-Me», faz-Se simultaneamente sacerdote e vítima. Por conseguinte, Bultmann tem razão ao traduzir a afirmação «Eu consagro-Me» por «Eu sacrifico-Me». Compreendemos nós agora o que acontece quando Jesus diz «Eu consagro-Me por eles»? Isto é o acto sacerdotal em que Jesus – o Homem Jesus, que forma um só com o Filho de Deus – Se entrega ao Pai por nós. É a expressão do facto que Ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. Consagro-Me, sacrifico-Me: esta palavra abismal, que nos permite lançar um olhar no íntimo do coração de Jesus Cristo, deveria ser sempre de novo objecto da nossa reflexão. Nela se encerra todo o mistério da nossa redenção. E nela está contida também a origem do sacerdócio da Igreja, do nosso sacerdócio.
Só agora podemos compreender até ao fundo a oração que o Senhor apresentou ao Pai pelos discípulos, por nós. «Consagra-os na verdade»: isto é a integração dos apóstolos no sacerdócio de Jesus Cristo, a instituição do seu sacerdócio novo para a comunidade dos fiéis de todos os tempos. «Consagra-os na verdade»: esta é a verdadeira oração de consagração pelos apóstolos. O Senhor pede que o próprio Deus os atraia a Si, para dentro da sua santidade. Pede que Ele os subtraia a si mesmos e os tome como sua propriedade, a fim de que, a partir d’Ele, possam desempenhar o serviço sacerdotal pelo mundo. Esta oração de Jesus aparece duas vezes, de forma ligeiramente modificada. Temos de ouvir as duas com muita atenção, para começar a entender, pelo menos vagamente, a realidade sublime que aqui se está a verificar: «Consagra-os na verdade» e – Jesus acrescenta – «a tua palavra é a verdade». Por conseguinte os discípulos são atraídos para o íntimo de Deus por meio da sua imersão na palavra de Deus. A palavra de Deus é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma no ser de Deus. Sendo assim, como se está a realizar isto na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de quanto o seja o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento? Ou não sucede antes que o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Porventura não são tantas vezes as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos? No fim de contas, não ficamos porventura na superficialidade de tudo o que, habitualmente, se impõe ao homem de hoje? Deixamo-nos verdadeiramente purificar no nosso íntimo pela palavra de Deus? Nietzsche desdenhou a humildade e a obediência como sendo virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou a ufania e a liberdade absoluta do homem. Ora bem, existem caricaturas duma humildade falsa e duma submissão errada, que não queremos imitar. Mas há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência. Sabemos nós aprender de Cristo a recta humildade, que corresponde à verdade do nosso ser, e aquela obediência que se submete à verdade, à vontade de Deus? «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade»: esta palavra da integração no sacerdócio ilumina a nossa vida e chama-nos a tonarmo-nos sem cessar discípulos daquela verdade que se manifesta na palavra de Deus.
Na interpretação desta frase, podemos dar ainda mais um passo. Não disse Cristo de Si mesmo: «Eu sou a verdade» (cf. Jo 14, 6)? E não é porventura Ele a Palavra viva de Deus, à qual todas e cada uma das outras palavras fazem referência? Assim, consagra-os na verdade quer dizer, fundamentalmente: torna-os um só comigo, Cristo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de facto, em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo. E, por conseguinte, o sacerdócio dos discípulos só pode ser participação no sacerdócio de Jesus. Portanto o nosso ser sacerdotes nada mais é que um novo e radical modo de unificação com Cristo. Esta foi-nos substancialmente concedida para sempre no Sacramento. Mas este novo timbre do ser pode tornar-se para nós um juízo de condenação, se a nossa vida não se desenvolve entrando na verdade do Sacramento. A tal propósito, as promessas que hoje renovamos dizem que a nossa vontade assim se deve orientar: «Domino Iesu arctius coniungi et conformari, vobismetipsis abrenuntiantes». Unir-se a Cristo supõe a renúncia. Comporta não querermos impor a nossa estrada e a nossa vontade; não desejarmos tornar-nos isto ou aquilo, mas abandonarmo-nos a Ele em todo o lado e modo como Ele quiser servir-Se de nós. «Vivo, e contudo já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim», disse São Paulo a tal propósito (cf. Gal 2, 20). No «sim» da Ordenação Sacerdotal, fizemos esta renúncia fundamental a querer ser autónomos, à «auto-realização». Mas é preciso dia após dia cumprir este grande «sim» nos múltiplos «sins» e nas pequenas renúncias. Entretanto este «sim» dos pequenos passos, que juntos constituem o grande «sim», só poderá realizar-se sem amargura nem autocomiseração, se Cristo for verdadeiramente o centro da nossa vida; se cultivarmos uma verdadeira familiaridade com Ele. De facto, então experimentaremos no meio das renúncias, que num primeiro momento podem causar sofrimento, a alegria crescente da amizade com Ele, todos os pequenos e às vezes grandes sinais do seu amor, que nos dá continuamente. «Aquele que se perde a si mesmo, encontra-se». Se ousamos perder-nos a nós mesmos pelo Senhor, experimentaremos como é verdadeira a sua palavra.
Deste processo de sermos imersos na Verdade, em Cristo, faz parte a oração, na qual nos exercitamos na amizade com Ele e também aprendemos a conhecê-Lo: o seu modo de ser, de pensar, de agir. Rezar é fazer estrada em comunhão pessoal com Cristo, expondo diante d’Ele a nossa vida diária, os nossos sucessos e os nossos falimentos, as nossas fadigas e as nossas alegrias: é simplesmente apresentarmo-nos a nós mesmos diante d’Ele. Mas, para que isto não se torne um autocontemplar-se, é importante aprendermos continuamente a orar rezando com a Igreja. Celebrar a Eucaristia quer dizer rezar. Celebramos no justo modo a Eucaristia, se, com o nosso pensamento e com o nosso ser, penetramos nas palavras que a Igreja nos propõe. Nelas está presente a oração de todas as gerações, que nos tomam consigo ao longo do caminho para o Senhor. E, como sacerdotes, somos na celebração eucarística aqueles que, com a sua oração, abrem estrada à oração dos fiéis de hoje. Se estivermos interiormente unidos às palavras da oração, se nos deixarmos guiar e transformar por elas, então também os fiéis encontram o acesso a tais palavras. Então tornamo-nos todos verdadeiramente «um só corpo e uma só alma» com Cristo.
Ser imersos na verdade e, deste modo, na santidade de Deus significa para nós também aceitar o carácter exigente da verdade; contrapor-se, tanto nas coisas grandes como nas pequenas, à mentira, que de modo tão variado está presente no mundo; aceitar a fadiga da verdade, para que a sua alegria mais profunda esteja presente em nós. Quando falamos de ser consagrados na verdade, também não devemos esquecer que, em Jesus Cristo, verdade e amor são uma coisa só. Ser imersos n’Ele significa ser imersos na sua bondade, no amor verdadeiro. O amor verdadeiro não se adquire a baixo preço, pode ser até muito exigente. Opõe resistência ao mal, para levar ao homem o verdadeiro bem. Se nos tornamos um só com Cristo, aprendemos a reconhecê-Lo precisamente nos doentes, nos pobres, nos pequenos deste mundo; tornamo-nos então pessoas que servem, que reconhecem os irmãos e irmãs d’Ele e, nestes, encontramo-Lo a Ele mesmo.
«Consagra-os na verdade» – tal é a primeira parte daquela frase de Jesus. Mas depois acrescenta: «Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados de verdade», isto é, verdadeiramente (cf. Jo 17, 19). Penso que esta segunda parte encerre um específico significado. Nas religiões do mundo, existem variados modos rituais de «santificação», de consagração duma pessoa humana. Mas todos estes ritos podem permanecer algo de simplesmente formal. Cristo pede para os discípulos a verdadeira santificação, que transforme o seu ser, que os transforme a eles mesmos; que não fique uma forma ritual, mas seja um tornar-se verdadeiramente propriedade do próprio Deus. Poderemos também dizer: Cristo pediu para nós o Sacramento que nos toca na profundeza do nosso ser. Mas pediu também que esta transformação em nós dia após dia se traduza em vida; que no nosso quotidiano e na nossa vida concreta de cada dia sejamos verdadeiramente permeados pela luz de Deus.
Na vigília da minha Ordenação Sacerdotal, há 58 anos, abri a Sagrada Escritura, porque queria ainda receber uma palavra do Senhor para aquele dia e para o meu futuro caminho de sacerdote. O meu olhar deteve-se neste texto: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade». Então dei-me conta: o Senhor está a falar de mim, e está a falar a mim; é isto mesmo que amanhã sucederá comigo. Em última análise, não somos consagrados através de ritos, embora haja necessidade de ritos. O banho, onde o Senhor nos imerge, é Ele próprio – a Verdade em pessoa. Ordenação Sacerdotal significa ser imersos n’Ele, na Verdade. Fico a pertencer de modo novo a Ele e, deste modo, aos outros, «para que venha o seu Reino». Queridos amigos, nesta hora da renovação das promessas, queremos pedir ao Senhor que nos faça ser homens de verdade, homens de amor, homens de Deus. Peçamos-Lhe para nos atrair cada vez mais para dentro d’Ele, a fim de nos tornarmos verdadeiramente sacerdotes da Nova Aliança. Amen.
HOMILIA DO PAPA BENTO XVI
Basílica VaticanaQuinta-feira Santa, 9 de Abril de 2009
Amados irmãos e irmãs!
No Cenáculo, na noite anterior à sua paixão, o Senhor rezou pelos discípulos reunidos ao seu redor, estendendo ao mesmo tempo o olhar para a comunidade dos discípulos de todos os séculos, para «aqueles que – disse – vão acreditar em Mim por meio da sua palavra» (Jo 17, 20). Na oração pelos discípulos de todos os tempos, Ele viu-nos também a nós e rezou por nós. Ouçamos o que pede para os Doze e para nós aqui reunidos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo. Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 17s). O Senhor pede a nossa santificação, a nossa consagração na verdade. E envia-nos para continuarmos a sua própria missão. Mas há, nesta oração, uma palavra que chama a nossa atenção; parece-nos pouco compreensível. Jesus diz: «Eu consagro-Me por eles». Que significa? Porventura não é Jesus por natureza «o Santo de Deus», como Pedro confessou na hora decisiva de Cafarnaum (cf. Jo 6, 69)? Como pode agora consagrar-Se, isto é, santificar-Se a Si mesmo?
Para o compreendermos, temos sobretudo de esclarecer o significado das palavras «santo» e «santificar/consagrar», na Bíblia. «Santo»: com esta palavra, descreve-se em primeiro lugar a natureza do próprio Deus, o seu modo de ser muito particular, divino, que é próprio só d’Ele. Só Ele é o verdadeiro e autêntico Santo no sentido originário. Qualquer outra santidade deriva d’Ele, é participação no seu modo de ser. Ele é a Luz puríssima, a Verdade e o Bem sem mancha. Por isso, consagrar alguma coisa ou alguém significa dar tal coisa ou pessoa em propriedade a Deus, tirá-la do âmbito daquilo que é nosso e inseri-la na atmosfera d’Ele, de tal modo que deixe de pertencer às nossas coisas para ser totalmente de Deus. Consagração é, pois, tirar do mundo e entregar ao Deus vivo. Aquela coisa ou pessoa deixa de pertencer a nós ou a si mesma, mas é imersa em Deus. Este acto de privar-se duma coisa para a entregar a Deus, chamamo-lo também sacrifício: já não será propriedade minha, mas d’Ele. No Antigo Testamento, a entrega duma pessoa a Deus, isto é, a sua «santificação» coincide com a sua ordenação sacerdotal, e assim se define também em que consiste o sacerdócio: é uma passagem de propriedade, um ser tirado do mundo e dado a Deus. E, deste modo, ficam agora patentes as duas direcções que fazem parte do processo da santificação/consagração: sair dos contextos da vida do mundo e «ser posto à parte» para Deus. Mas por isto mesmo não é uma segregação; antes, ser entregue a Deus significa ser posto a representar os outros. O sacerdote é subtraído aos laços do mundo e dado a Deus, e precisamente assim, a partir de Deus, deve estar disponível para os outros, para todos. Quando Jesus diz «Eu consagro-Me», faz-Se simultaneamente sacerdote e vítima. Por conseguinte, Bultmann tem razão ao traduzir a afirmação «Eu consagro-Me» por «Eu sacrifico-Me». Compreendemos nós agora o que acontece quando Jesus diz «Eu consagro-Me por eles»? Isto é o acto sacerdotal em que Jesus – o Homem Jesus, que forma um só com o Filho de Deus – Se entrega ao Pai por nós. É a expressão do facto que Ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. Consagro-Me, sacrifico-Me: esta palavra abismal, que nos permite lançar um olhar no íntimo do coração de Jesus Cristo, deveria ser sempre de novo objecto da nossa reflexão. Nela se encerra todo o mistério da nossa redenção. E nela está contida também a origem do sacerdócio da Igreja, do nosso sacerdócio.
Só agora podemos compreender até ao fundo a oração que o Senhor apresentou ao Pai pelos discípulos, por nós. «Consagra-os na verdade»: isto é a integração dos apóstolos no sacerdócio de Jesus Cristo, a instituição do seu sacerdócio novo para a comunidade dos fiéis de todos os tempos. «Consagra-os na verdade»: esta é a verdadeira oração de consagração pelos apóstolos. O Senhor pede que o próprio Deus os atraia a Si, para dentro da sua santidade. Pede que Ele os subtraia a si mesmos e os tome como sua propriedade, a fim de que, a partir d’Ele, possam desempenhar o serviço sacerdotal pelo mundo. Esta oração de Jesus aparece duas vezes, de forma ligeiramente modificada. Temos de ouvir as duas com muita atenção, para começar a entender, pelo menos vagamente, a realidade sublime que aqui se está a verificar: «Consagra-os na verdade» e – Jesus acrescenta – «a tua palavra é a verdade». Por conseguinte os discípulos são atraídos para o íntimo de Deus por meio da sua imersão na palavra de Deus. A palavra de Deus é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma no ser de Deus. Sendo assim, como se está a realizar isto na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de quanto o seja o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento? Ou não sucede antes que o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Porventura não são tantas vezes as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos? No fim de contas, não ficamos porventura na superficialidade de tudo o que, habitualmente, se impõe ao homem de hoje? Deixamo-nos verdadeiramente purificar no nosso íntimo pela palavra de Deus? Nietzsche desdenhou a humildade e a obediência como sendo virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou a ufania e a liberdade absoluta do homem. Ora bem, existem caricaturas duma humildade falsa e duma submissão errada, que não queremos imitar. Mas há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência. Sabemos nós aprender de Cristo a recta humildade, que corresponde à verdade do nosso ser, e aquela obediência que se submete à verdade, à vontade de Deus? «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade»: esta palavra da integração no sacerdócio ilumina a nossa vida e chama-nos a tonarmo-nos sem cessar discípulos daquela verdade que se manifesta na palavra de Deus.
Na interpretação desta frase, podemos dar ainda mais um passo. Não disse Cristo de Si mesmo: «Eu sou a verdade» (cf. Jo 14, 6)? E não é porventura Ele a Palavra viva de Deus, à qual todas e cada uma das outras palavras fazem referência? Assim, consagra-os na verdade quer dizer, fundamentalmente: torna-os um só comigo, Cristo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de facto, em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo. E, por conseguinte, o sacerdócio dos discípulos só pode ser participação no sacerdócio de Jesus. Portanto o nosso ser sacerdotes nada mais é que um novo e radical modo de unificação com Cristo. Esta foi-nos substancialmente concedida para sempre no Sacramento. Mas este novo timbre do ser pode tornar-se para nós um juízo de condenação, se a nossa vida não se desenvolve entrando na verdade do Sacramento. A tal propósito, as promessas que hoje renovamos dizem que a nossa vontade assim se deve orientar: «Domino Iesu arctius coniungi et conformari, vobismetipsis abrenuntiantes». Unir-se a Cristo supõe a renúncia. Comporta não querermos impor a nossa estrada e a nossa vontade; não desejarmos tornar-nos isto ou aquilo, mas abandonarmo-nos a Ele em todo o lado e modo como Ele quiser servir-Se de nós. «Vivo, e contudo já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim», disse São Paulo a tal propósito (cf. Gal 2, 20). No «sim» da Ordenação Sacerdotal, fizemos esta renúncia fundamental a querer ser autónomos, à «auto-realização». Mas é preciso dia após dia cumprir este grande «sim» nos múltiplos «sins» e nas pequenas renúncias. Entretanto este «sim» dos pequenos passos, que juntos constituem o grande «sim», só poderá realizar-se sem amargura nem autocomiseração, se Cristo for verdadeiramente o centro da nossa vida; se cultivarmos uma verdadeira familiaridade com Ele. De facto, então experimentaremos no meio das renúncias, que num primeiro momento podem causar sofrimento, a alegria crescente da amizade com Ele, todos os pequenos e às vezes grandes sinais do seu amor, que nos dá continuamente. «Aquele que se perde a si mesmo, encontra-se». Se ousamos perder-nos a nós mesmos pelo Senhor, experimentaremos como é verdadeira a sua palavra.
Deste processo de sermos imersos na Verdade, em Cristo, faz parte a oração, na qual nos exercitamos na amizade com Ele e também aprendemos a conhecê-Lo: o seu modo de ser, de pensar, de agir. Rezar é fazer estrada em comunhão pessoal com Cristo, expondo diante d’Ele a nossa vida diária, os nossos sucessos e os nossos falimentos, as nossas fadigas e as nossas alegrias: é simplesmente apresentarmo-nos a nós mesmos diante d’Ele. Mas, para que isto não se torne um autocontemplar-se, é importante aprendermos continuamente a orar rezando com a Igreja. Celebrar a Eucaristia quer dizer rezar. Celebramos no justo modo a Eucaristia, se, com o nosso pensamento e com o nosso ser, penetramos nas palavras que a Igreja nos propõe. Nelas está presente a oração de todas as gerações, que nos tomam consigo ao longo do caminho para o Senhor. E, como sacerdotes, somos na celebração eucarística aqueles que, com a sua oração, abrem estrada à oração dos fiéis de hoje. Se estivermos interiormente unidos às palavras da oração, se nos deixarmos guiar e transformar por elas, então também os fiéis encontram o acesso a tais palavras. Então tornamo-nos todos verdadeiramente «um só corpo e uma só alma» com Cristo.
Ser imersos na verdade e, deste modo, na santidade de Deus significa para nós também aceitar o carácter exigente da verdade; contrapor-se, tanto nas coisas grandes como nas pequenas, à mentira, que de modo tão variado está presente no mundo; aceitar a fadiga da verdade, para que a sua alegria mais profunda esteja presente em nós. Quando falamos de ser consagrados na verdade, também não devemos esquecer que, em Jesus Cristo, verdade e amor são uma coisa só. Ser imersos n’Ele significa ser imersos na sua bondade, no amor verdadeiro. O amor verdadeiro não se adquire a baixo preço, pode ser até muito exigente. Opõe resistência ao mal, para levar ao homem o verdadeiro bem. Se nos tornamos um só com Cristo, aprendemos a reconhecê-Lo precisamente nos doentes, nos pobres, nos pequenos deste mundo; tornamo-nos então pessoas que servem, que reconhecem os irmãos e irmãs d’Ele e, nestes, encontramo-Lo a Ele mesmo.
«Consagra-os na verdade» – tal é a primeira parte daquela frase de Jesus. Mas depois acrescenta: «Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados de verdade», isto é, verdadeiramente (cf. Jo 17, 19). Penso que esta segunda parte encerre um específico significado. Nas religiões do mundo, existem variados modos rituais de «santificação», de consagração duma pessoa humana. Mas todos estes ritos podem permanecer algo de simplesmente formal. Cristo pede para os discípulos a verdadeira santificação, que transforme o seu ser, que os transforme a eles mesmos; que não fique uma forma ritual, mas seja um tornar-se verdadeiramente propriedade do próprio Deus. Poderemos também dizer: Cristo pediu para nós o Sacramento que nos toca na profundeza do nosso ser. Mas pediu também que esta transformação em nós dia após dia se traduza em vida; que no nosso quotidiano e na nossa vida concreta de cada dia sejamos verdadeiramente permeados pela luz de Deus.
Na vigília da minha Ordenação Sacerdotal, há 58 anos, abri a Sagrada Escritura, porque queria ainda receber uma palavra do Senhor para aquele dia e para o meu futuro caminho de sacerdote. O meu olhar deteve-se neste texto: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade». Então dei-me conta: o Senhor está a falar de mim, e está a falar a mim; é isto mesmo que amanhã sucederá comigo. Em última análise, não somos consagrados através de ritos, embora haja necessidade de ritos. O banho, onde o Senhor nos imerge, é Ele próprio – a Verdade em pessoa. Ordenação Sacerdotal significa ser imersos n’Ele, na Verdade. Fico a pertencer de modo novo a Ele e, deste modo, aos outros, «para que venha o seu Reino». Queridos amigos, nesta hora da renovação das promessas, queremos pedir ao Senhor que nos faça ser homens de verdade, homens de amor, homens de Deus. Peçamos-Lhe para nos atrair cada vez mais para dentro d’Ele, a fim de nos tornarmos verdadeiramente sacerdotes da Nova Aliança. Amen.
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